A lama

quarta-feira, maio 21, 2014

Caminhava sem rumo pelo parque, distraidamente, olhando para seus pés e para as folhas no chão, quando sentiu uma inquietação, e notou em seu braço um pouco de lama. A princípio achou estranho, e pôs-se a pensar de onde teria saído aquela lama. Não conseguiu identificar sua origem, uma vez que o parque estava limpo ao seu redor, e não havia nenhum sinal de lama em lugar nenhum. Esfregou a lama com as mãos, e estas acabaram também se sujando. Tentou limpar nas roupas, mas nada adiantou. Sem se preocupar, resolveu que quando chegasse em casa cuidaria da lama. Foi o que fez — ou tentou fazer. A lama não saiu com água, nem sabão, detergente, desinfetante, nem com nenhum produto de limpeza conhecido. Nada tirava a lama de seu braço e mãos. Acabou se distraindo e esqueceu-se da lama. 

No outro dia, acordou cedo para ir ao trabalho. E notou que a lama continuava em seu braço, e também nas mãos. Tentou novamente limpar a lama, mas nada adiantou. Com medo da reação dos colegas do trabalho, cobriu as mãos com luvas e os braços com uma jaqueta. Por sorte, estava frio, e suas roupas não causariam espanto. E assim se passou, até que, depois de entregar alguns papéis para seu chefe, resolveu ir ao banheiro. Lá, notou que a lama agora estava também no outro braço, embora não o cobrisse por completo. Era apenas uma mancha, do tamanho de uma bola de tênis, que como as outras, não saía por nada. Cobriu-as com sua jaqueta e voltou ao trabalho. E as horas passaram e ele nem sequer pensou na lama.

Almoçou em um restaurante, despreocupado. As mãos, ainda enluvadas, não deixavam à mostra a lama que cobriam-nas. Ao terminar sua refeição, sentiu-se incomodado, porém não pensou muito a respeito. Foi ao trocar de roupa, em casa, que notou que havia lama também em sua coxa. Não sabia o que era aquela lama, tampouco procurava a origem dela, apenas concentrou-se em lavar-se. E de nada adiantou.

Sua esposa (sim, ele era casado) chegou em casa tarde, como avisara que ia fazer. Ele não mostrou a lama para ela. Pelo contrário, manteve seu corpo completamente coberto, de modo que ela não visse nada. Foi dormir dessa forma, evitando o contato com a esposa, pois temia que ela visse a lama em seu corpo. Sentia vergonha da lama, e tentava, de todas as formas, escondê-la.

Acordou e correu para o banheiro, sem se preocupar com a esposa ao seu lado, que estava acordada observando-o dormir. Trancou a porta do banheiro e se despiu, ficando aflito ao perceber que a lama ainda estava lá, e pior, havia coberto parte do seu peito, chegando a aparecer um pouco no pescoço. Vestiu-se de forma que pudesse cobrir todo o corpo, usando um cachecol no pescoço, temendo que alguém pudesse ver a lama. Saiu do banheiro, olhou a esposa na cama e sentiu alívio quando percebeu que ela não estranhara suas roupas. Sem comer nada, deixou a casa e foi direito ao trabalho, pensando em terminar tudo logo e poder voltar para casa. Na volta, compraria os melhores produtos de limpeza que conhecia, e daria fim aquela lama, que tanto o incomodava.

Comprou os produtos de limpeza, e como era de se esperar, de nada adiantaram. A lama estava se espalhando cada vez mais, e ele temia que pudesse cobrir todo seu corpo. E foi o que aconteceu. Ao término de cinco dias, ele estava coberto de lama dos pés a cabeça. No início, pensou até mesmo em cobrir seu corpo com maquiagem. Faltou ao trabalho por alguns dias, mas notou com o tempo que, se não percebiam, fingiam não perceber a lama. Sua esposa nada dizia, e ele não se atrevia a falar sobre aquilo. Tinha medo que, se dissesse as pessoas que estava coberto de lama, elas acabassem por notá-la, e então passassem a ver somente a lama, e não ele. Não queria que ninguém o visse como a lama, porque ele acreditava que não era feito dela.

Os dias passaram, e a lama, que já não se espalhava, passou a aumentar. Ficava cada vez mais grossa e pesada, e ele passou a ter dificuldades até mesmo para levantar de manhã. Cansava-se com frequência, falava pouco, comia pouco, trabalhava com pouca eficiência, e sua esposa reclamava que ele não lhe dava mais atenção, que ele não gostava mais dela e nem sequer sorria ao vê-la. Mas ela não sabia que a lama o impedia de fazer tudo, tinha medo de que ela pudesse sentir a lama, vê-la, percebê-la. Não conseguia sorrir. A lama era pesada demais para que conseguisse mover seus lábios. Era pesada demais para deixá-lo fazer qualquer coisa. Era mais fácil ficar deitado e dormir. A lama lhe dava muito sono. E ele só pensava na lama.

Perdeu o emprego. Os amigos se afastaram. Brigou com a esposa e ela foi para a casa da mãe, pensando em divórcio. Viu-se sozinho, somente ele e a lama e, olhando-se no espelho do banheiro, não reconheceu seu rosto. Já não sabia mais o que era ele e o que era a lama. Questionou-se se a lama era ele ou parte dele, e se ela não estava ali desde o começo. Não conseguia se lembrar de uma época sem a lama.

Pensou em desistir. Decidido, subiu na ponte mais alta da cidade. O vento batia em seu rosto, mas ele não o sentia, porque a lama o impedia de sentir qualquer coisa. Sentou-se na beirada, olhando o abismo abaixo de si. Murmurou uma prece, sem fé alguma. A lama, que consumira sua esperança, não o deixava ter fé, nem medo. Respirou fundo e arrastou-se ligeiramente para frente. Ia se jogar, quando notou um estranho caminhando em sua direção. Não era nenhum conhecido, mas ele sentiu um estranho fascínio por ele. Percebeu no rosto do estranho que ele via a lama. Ele não precisava escondê-la, nem disfarçá-la, pois sabia que o estranho a enxergava, e o compreendia. Percebeu que não precisava ter vergonha da lama, que ela não era ele, nem mesmo parte dele. Era algo que havia acontecido a ele, e que, concentrado em escondê-la e cobri-la, não enxergou o que estava bem diante de seus olhos: só poderia limpar-se da lama quando entendesse o que ela era e de onde vinha. 

O estranho estendeu a mão, e ele a pegou. Desceu da beirada, e com dificuldade pôs-se a caminhar, ao lado daquele estranho que aparecera do nada. Ele contou sua história ao estranho, como percebeu a lama e como ela foi tomando conta de seu corpo. Notou, que a cada passo que dava, um pouco da lama caía, até que ficou mais fácil caminhar. O estranho ouvia tudo, e vez ou outra falava alguma coisa, sempre caminhando ao seu lado. Quando grande parte da lama caiu, sentiu o vento no rosto, e lembrou-se de como era boa a sensação. Admirou o lugar sua volta, e tudo parecia novo. A lama, que também cobria seus olhos, o impedia de ver as coisas com clareza. Ainda caminhando, olhou para as mãos do estranho, para seus braços, e percebeu que neles haviam algumas marcas, de tamanhos diferentes, em tom mais escuro que a pele, como se ali tivesse existido, há muito tempo atrás, pequenas manchas de lama...

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11 comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Gostei bastante. Como eu sou meio ruim pra entender as coisas, vou perguntar: a lama seria as coisas que nós deixamos de dizer? Ou melhor, a lama seria um peso que nós guardamos e carregamos todos os dias?

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  3. Isso o que eu acabei de ler foi uma das coisas mais belas que eu já vi na blogsfera. Seu texto carrega muita emoção e bastante sensibilidade e até mesmo uma certa intimidade com as palavras. Gostei bastante do trecho "Pensou em desistir. Decidido, subiu na ponte mais alta da cidade. O vento batia em seu rosto, mas ele não o sentia, porque a lama o impedia de sentir qualquer coisa. Sentou-se na beirada, olhando o abismo abaixo de si. Murmurou uma prece, sem fé alguma. A lama, que consumira sua esperança, não o deixava ter fé, nem medo." Muito poético mesmo. Adorei seu blog também. Obviamente seguindo *----*.
    cronicasdeumlunatico.blogspot.com

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    1. Ownnn! Obrigada pelo comentário, foi um dos mais belos que recebi *--*

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  4. Marina, quanto tempo!!! Lindo texto, vc escreve super bem.
    Tentarei passar mas vezes aqui
    Brubs
    http://contodeumlivro.blogspot.com/

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    1. Obrigada Brubs! Também vou tentar passar mais vezes no seu blog *-*

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  5. Escrita excelente.
    Me lembrou muito algum livro que não lembro em especifico. Acho que sua escrita lembra um pouco a de uma autora que li, a mesma que escreveu Afogando Ruth, pois é culta ao mesmo tempo que simples.
    Até mais. http://realidadecaotica.blogspot.com.br/

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    1. Obrigada Renato! Não conheço a autora, mas fico lisonjeada pela comparação *-*

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  6. Gostei muito do seu texto, me lembra muito coisas que escondemos de nos mesmos, e que quando temos coragem de reconhecer ela simplesmente se tornam mais fáceis, parabéns, você escreve tão bem, que me dá arrepios. =) me visite assim que quiser. Beijo

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